quinta-feira, 4 de junho de 2015

A Receita - O Poste Soluções Luminosas

Crédito da Imagem: Divulgação.

Por Ellis Regina Albuquerque de Souza
Pelo fato do dia Mundial do Teatro e do dia Nacional do Circo serem comemorados na mesma data: 27 de março, o SESC/PE promoveu o evento “Semana de homenagem ao Teatro e Circo”, que perpassou pelos SESCs do nosso estado, com atividades durante o mês de março.
O grupo “O Poste Soluções Luminosas” foi um dos que participaram desse evento (para saber mais sobre o grupo acesse: http://oposteoposte.blogspot.com.br/ e/ou sua página do facebook: https://www.facebook.com/oposte.solucoesluminosas ), com seu espetáculo A Receita, que pude conferir no dia 11 de março, no Palco da área de lazer do Sesc Piedade, de forma gratuita.
A Receita tem como diretor, dramaturgo, encenador e figurinista Samuel Santos e, como atriz, Naná Sodré. Com base no que o próprio grupo informa, A Receita teve sua semente plantada com uma cena de 5 minutos, resultado de um trabalho que Naná Sodré construiu junto a Eugenio Barba e Julia Varley, no VI Masters-in-Residence, ocorrida no ano de 2013, em Brasília. Partindo dessa experiência, Samuel e Naná deram continuidade ao trabalho no Recife, com o Apoio do Edital de Ocupação do Teatro Joaquim Cardozo/UFPE, no período de maio a julho de 2014.
Com base em Michael Chekhov e nos princípios da biomecânica, temos nessa obra, considerada tragicômica, o universo da violência doméstica, vivido por muitas mulheres. A atriz Naná Sodré encarna uma mulher anônima e invisível, de aproximadamente 48 anos, em situação de total dependência emocional, casada e com filhos, que passa a maior parte do tempo na cozinha tentando temperar suas ilusões, sejam elas boas ou não, com sal, alho e coentro com cebolinha.
Encenado de maneira intimista, o espetáculo funciona como um espelho, no qual muitas vezes vemos refletir nossas atitudes e comportamentos. Ao redor de Naná, podemos observar alguns elementos que fazem parte do dia a dia da personagem, como o sapato do marido, ingredientes da sua comida que ela prepara todos os dias, perfume de outra mulher, etc. Elementos esses que são marcantes e fundamentais para o entendimento da história.
Com um monólogo forte, A Receita retrata não apenas uma mulher, mas todas que passaram por isso, digo mais, mostra o que vemos e tentamos mascarar... um dos maiores males que temos na nossa sociedade há séculos. A violência doméstica reprime, humilha e mata de forma lenta e dolorosa mulheres de todas as partes do mundo e é justamente isso que Naná nos mostra, baseada na pesquisa do grupo O Poste, mulheres de várias nacionalidades, religiões e culturas distintas.
Na trilha sonora, temos cantos e orações de raízes africanas que se misturam com orações da cultura cristã, construindo uma musicalidade impactante. Naná usa e abusa do seu vigor, do seu contínuo trabalho de construção e reconstrução, casando com as pesquisas desenvolvidas pelo grupo que são voltadas à ancestralidade africana, a fim de resgatar nossas origens, usando o Teatro como instrumento de voz e luta. Temos um bom exemplo de junção da parte técnica sem perder o encantamento da obra. A plateia está maravilhada após esse espetáculo de 45 minutos (por volta disso).
Posterior a apresentação, temos um debate bastante rico, com um público diversificado, formado por homens e mulheres de diversas idades, com diferentes níveis de vivências teatrais. Naná nos responde junto com Samuel ou simplesmente nos ouve, pois além de perguntas temos relatos íntimos de pessoas que passaram ou viram a violência doméstica de perto.

Saio respeitando e admirando ainda mais o Grupo O Poste. Reflito muito sobre esse espetáculo, sobre a condição desumana que muitas mulheres passam em pleno século XXI, percebo o poder que temos nas mãos de informar e fazer nosso papel de mudar a sociedade através da nossa arte. Vida longa ao Grupo O Poste.
OBS: Caso haja alguma alguma restrição quanto ao uso da imagem ou seu conteúdo, favor informar imediatamente a rodrigodourado78@gmail.com

O Bizarro Sonho de Steven

Crédito da Imagem: Paulo Fuga.
Por Gabrielle Suamy Gomes Campelo
O Bizarro Sonho de Steven é deveras intrigante e confusa, não é o tipo de peça que alcança a todos e em que o objetivo da direção fica claro de imediato (aliás, em que peça isso ocorre?). A peça conta com três personagens: O Palhaço Susxto, a Srta. Puta e o Aleijado. Todos eles personas, alter-egos de uma mesma mente doente e insana, todos partilhando deuma única loucura, loucura essa ao mesmo tempo semelhante e diferente. A peça esta rodando desde 2012 e é resultado de uma criação coletiva do Grupo de Teatro Facetas, Mutretas e Outras Histórias (RN).
O espetáculo busca colocar contra a parede tudo que nós consideramos confortável, cômodo, ele busca sempre nos tirar da nossa zona de conforto, trazendo uma sensação de agonia, impaciência, cansaço. Tudo no espetáculo ajuda a dar um ritmo e uma cara agoniante e esquizofrênica.
A sensação imediata ao se entrar na sala onde o espetáculo ocorre é de desconforto. Não há assentos, cadeiras, nem mesmo pequenas almofadas para o publico se sentar, durante todo o espetáculo ficamos em pé, e se nos agachamos ou sentamos no próprio chão somos imediatamente instruídos a nos levantarmos. Eles buscam, a meu ver, colocar em cheque a posição do espectador, tradicionalmente passivo, confortável, acomodado. Se o objetivo era o desconforto a peça se saiu muito bem.
Um ponto que achei muito interessante foi a TV, é um detalhe pequeno, que só aparece durante os momentos iniciais da peça, mas a forma como ela interage com o público e depois como os atores interagem com o público através dela é algo que considero importante pensar. Outra coisa que o espetáculo busca colocar em xeque, a interação, o contato, o contraste teatro/TV. Podemos ainda interpretar a TV como um disseminador da loucura, desse agoniante sonho, que em determinado momento sai da tela e nos encarra olho no olho, muito mais próximo do que a maioria das pessoas consideraria confortável.
A peça brinca com os conceitos de ID, Superego e Ego, sendo as personagens uma representação de cada uma dessas facetas da mente humana. Tenta mostrar dessa forma como nosso inconsciente é presente e como nós somos inconscientes de sua influência e de sua presença.
A peça está toda envolta em um clima de alucinação, sonho, ou melhor, pesadelo, daqueles que não te deixam brechas para escapar. Mergulhante na mente lúcida de um louco, em que as coisas vão tomando forma aos poucos, mostrando como nossos pensamentos e medos são materializados, deixando de ser apenas abstrações de nossas cabeças para se tornar algo concreto. A representação disso na peça é a moto, que vai tomando forma aos poucos, primeiro é apenas um guidão com um faroul e quando nos damos conta temos uma moto real atropelando o Aleijado.
Um dos elementos da peça que mais me intrigou foi a boneca que sempre acompanhava a Srta. Puta, era como um quarto elemento, quase como um quarto personagem. Se os personagens representavam um Ego, ID e Super Ego doentes e problemáticos, a boneca era um último resquício de sanidade, realidade, sem voz, inerte, manipulada e quase completamente destruída pelos seus companheiros doentes e insanos.

Por fim, é uma peça complexa, complexa até demais, o que deixa a maioria dos espectadores confusos. O desconforto e a agonia em vez de causar uma reflexão acaba, para muitos, se resumindo ao desconforto, a agonia e só, gerando em alguns casos repulsa. A peça se torna extremamente interessante para quem consegue tirar algum conceito e entendimento dela, e ainda há aqueles que apesar de conseguir tirar um entendimento ficam tão desconfortáveis que nem assim conseguem tirar algum prazer da experiência. Isso, infelizmente, acaba por fazer que a peça atinja um número pequeno de pessoas e um número também pequeno de quem consegue tirar algum gosto pelo espetáculo.
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Na Beira - Teatro de Fronteira


Crédito da Imagem: Ricardo Maciel.

Por Maria da Paixão Andrade Félix Vieira

Há um tipo de teatro que quebra com o espaço tradicional de apresentação de teatro em palco italiano para ser representado em casa com o nome de “teatro domiciliar”, um exemplo desse tipo de apresentação é o espetáculo recifense Na Beira, um monólogo autobiográfico feito pelo ator Plínio Maciel, representado em sua casa e dirigido pelo teatrólogo Rodrigo Dourado.

Primeiramente há um acolhimento dos espectadores com um lanche e com a música “Hino a Surubim” que está relacionada ao monólogo, já que foi nessa cidade do interior que o ator nasceu e se criou e que, portanto, tem grande importância na sua biografia. Quem nunca participou desse tipo de espetáculo talvez se sinta um pouco tímido ao entrar na casa de um desconhecido e se relacionar ombro a ombro com outras pessoas, mas é essa intimidade que dá um brilho único a essa forma de fazer teatro, no qual barreiras são quebradas e no qual, também, há a preocupação em fazer com que o espectador se sinta “em casa”, permitindo-se para esse novo tipo de experiência.

Começa a peça quando se baixa a música e uma luz, controlada pelo ator, é posta sobre o balcão da mesa da cozinha, dando a impressão de uma tela recortada da própria realidade. Plínio Maciel inicia, então, a sua contação de histórias servindo-se de objetos que remontam à sua memória de menino do interior de Pernambuco. A simbologia dos objetos e o tom saudoso do ator proporcionam à peça um minimalismo lindo, capaz de fazer o espectador pensar na sua própria infância por meio dessas lembranças tão detalhadas, muitas vezes cômicas, e de uma nuance quase que ingênua.

Depois o ator vem para frente do público de 24 pessoas na sua sala de estar e toma um lugar de igual para igual, como se estivéssemos em uma roda de amigos, dando continuidade, assim, com a narração dos seus feitos de criança e usando mão de fotografias e objetos como provas da verdade de suas falas. O espetáculo é calcado na memória desse contador de histórias nato que entra em contato direto com o público, fazendo, com a participação ativa do espectador, de sua casa um ambiente familiar para todas aquelas pessoas inicialmente estranhas.


O espectador sai da apresentação com uma nova experiência sensorial e com certo carinho pelo ator que faz comédia da sua própria história. A intimidade obtida durante as horas da peça cria uma energia de comodidade e sentimentalismo entre todos da sala, que se entreolham e criam laços invisíveis no decorrer da peça.

EXU, A BOCA DO UNIVERSO: UM TEATRO DO FOGO, DO RITO E DA ARTE

Crédito da Imagem: Divulgação.

Por Marcílio Moraes


Eu não sabia ler, nem escrever e já percebia uma verdade que até hoje escapa a Gilberto Freire: - não gostamos de negro. Nada mais límpido, nítido, inequívoco, do que o nosso racismo. E como é humilhante a relação entre brancos e negros. Os brancos não gostam dos negros; e o pior é que os negros não reagem. Veja bem: - não reagem. (...) A ‘democracia racial’ que nós fingimos é a mais cínica, a mais cruel das manifestações. (Nelson Rodrigues)

Inspirado por Nelson Rodrigues, diria que é óbvia e ululante a situação de opressão sofrida pelos negros do nosso país, sobretudo, pelos homens e mulheres adeptos das religiões de matrizes africanas que, constantemente, são perseguidos e humilhados nessa sociedade que, em tese, denomina-se laica e ancora-se em uma suposta democracia racial que, no entanto, trata-se de uma tentativa ordinária de varrer para debaixo do tapete a sujeira do preconceito étnico-racial acumulada durante os quase quinhentos e quinze anos de Brasil.

Consciente do fato, transfiro o problema para a nossa arte, o Teatro, que durante muito tempo foi privilégio dos homens brancos. No Brasil, o negro durante muito tempo esteve fora dos palcos, quando era preciso pôr uma personagem negra em cena borravam a cara de algum ator branco para que este representasse tal personagem. Toda história do negro no Teatro brasileiro está carregada de situações desse tipo, no entanto, cabe destacar que todos os avanços com relação ao negro no Teatro se devem aos grupos teatrais vinculados a movimentos negros, como foi o caso do Teatro Experimental do Negro (1945-61), fundado por Abdias do Nascimento, que fez do TEN um divisor de águas na história do negro no Teatro brasileiro.

O Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas (NATA) é, sem dúvida, um exemplo contemporâneo de um teatro que põe no palco a figura do negro como uma forma de protestar contra toda nossa história de preconceito, destaca-se também por ter como diretora e fundadora do grupo Júlia Barbosa, que também é dramaturga, educadora e pesquisadora de cultura africana no Brasil; seu trabalho artístico vinculado à pesquisa e à sua raiz no Candomblé fazem do NATA um grupo de muita potência artística.

No dia 28 de março de 2015, pude ver o mais novo espetáculo do NATA: Exu, a boca do universo, no Teatro Capiba do SESC Casa Amarela, pelo festival Palco Giratório. Fui ao espetáculo com muita expectativa e sede de conhecer o trabalho do grupo, por haver lido algumas coisas sobre o trabalho que ele vem realizando e, mais recentemente, por tê-lo visto representado no livro História do negro do Teatro Brasileiro, de Joel Rufino dos Santos, e confesso que superei as minhas expectativas ao ver o espetáculo.

Exu, a boca do universo conta a história do deus Exu, que no panteão africano é considerado um dos orixás mais importantes, no entanto, ao logo do tempo foram atribuídas a ele características negativas. O espetáculo cumpre a função de poetizar a história do orixá e mostrar ao seu público as características de Exu que ainda são desconhecidas. Exu é um daqueles espetáculos que impede qualquer postura blasé por parte do público ou de qualquer intelectual, entenderemos o porquê.

Já no início do espetáculo os atores entram cantando e entoado um canto a Exu, e vão até a plateia oferecer cachaça, mas veja bem, estão ali para vender, cada dose custa um real, no meu entendimento, uma forma de deixar claro que Exu não dá nada de graça, ele dá, mas também quer receber, uma troca justa. Exu é exemplo de reciprocidade, se for agradado como se deve saberá retribuir. Assim começamos a conhecê-lo e o espetáculo ganha gosto, o gosto da cachaça que é doce ao mesmo tempo em que amarga e queima como fogo goela a baixo.

É bom falar de fogo, é uma boa definição para o que vi no palco do Capiba neste dia, havia bastante fogo no espetáculo inteiro, não o fogo em sua forma física, é claro, mas em sua forma simbólica mais potente, este fogo de que falo estava nos atores, em todos eles, sem exceção, aliás, um grande mérito do espetáculo: todos os atores pareciam estar na mesma sintonia, no mesmo nível, uníssonos como se espera de uma boa melodia. Voltando ao fogo, ele se fazia presente nos atores, pude perceber uma grande concentração das chamas nos olhos e no sexo, partindo do sexo – ou talvez prefiram chamar de “centro” – o fogo se expandia por toda extensão do corpo e através dos olhos eram lançadas as chamas sobre a platéia. Quem estava aberto, como eu, não deixou de se queimar.

Porém, uma coisa me deixou profundamente incomodado ao ver a apresentação do NATA, o espaço do Teatro Capiba é bastante reduzido, é um espaço que eu adoro, mas que não comportou como devia o espetáculo do grupo baiano. Veja bem, tudo no espetáculo parecia aumentar de tamanho, uma dilatação de tudo, inclusive dos corpos dos atores, de forma que cada gesto parecia não caber naquele espaço intimista, a peça parece ter sido pensada para espaços maiores, devido a isso, o espetáculo teve de conviver com as consequências da adaptação, os atores por vezes se esbarravam ou tropeçavam em refletores localizados no chão do palco, contudo, isso não foi suficiente para prejudicar o espetáculo, muito menos a performance dos atores que, aparentemente, souberam lidar tranquilamente com as dificuldades da cena.

Havia na encenação uma unidade primorosa, cada objeto de cena contribuía para a significação do espetáculo, a cena quase que nos transportava para algum terreiro de Candomblé, as cores enchiam os olhos.Vermelhos e amarelos se destacavam sobre o fundo preto da caixa cênica e de outros elementos de cena, cores de Exu. Na iluminação percebi o uso de poucos refletores, no entanto a iluminação estava na medida certa, bem executada e dialogava com a dramaturgia da cena, criando o clima ideal para o espetáculo.

Gostaria de destacar aqui algumas coisas que me fizeram feliz ao ver o espetáculo: não precisamos ir muito longe para ver espetáculos teatrais em que os atores são engolidos pelo texto, ou espetáculos em que há uma exacerbada valorização do texto em detrimento da ação física dos atores, felizmente isso não acontece com o espetáculo do NATA, os atores não se deixam engolir pelo texto, pelo contrário, há um domínio de cada palavra pronunciada, o espetáculo é muito musical, e os atores cantam o tempo inteiro, por isso, a sensação que tenho é que, mesmo quando param de cantar e pronunciam as palavras, é como se continuassem cantando. A palavra em Exu, a boca do universo tem força e agrada aos ouvidos, para o deleite daqueles que estão cansados de espetáculos em que a palavra não possui força e enfada.

A ação física dos atores também merece destaque, um preparo corporal fabuloso. Como falei há pouco, o corpo de cada ator em cena ganha uma dimensão ainda maior, se dilata e preenche o espaço, muita semelhança com o que acontece nas cerimônias do Candomblé, em que o corpo dilata-se ao receber a entidade, um outro tônus muscular é adquirido e a presença física se destaca. Assim, víamos Exu representado, as suas várias características sob os corpos dos vários atores, que de forma primorosa nos mostraram o melhor de um Exu esquecido e menosprezado por muitos.

A sexualidade também foi bem explorada nos corpos dos atores, não era pra menos, Exu está ligado a uma ideia de virilidade, carrega consigo o Ogó de forma fálica (uma espécie de cajado em forma de falo ereto), o que denota sua força e potência, justificam-se, então, o fogo e a força presentes no sexo ou no “centro energético” dos atores. Sem este fogo, talvez o espetáculo não tivesse a mesma qualidade, Exu não poderia existir naqueles corpos, e como eles mesmos disseram algumas vezes durante a representação, “Um corpo sem Exu é um corpo em coma”, ora, pois deixemos que Exu habite nossos corpos e nos traga esse fogo, essa vida.

Para concluir, cabe mencionar que, há alguns anos frequentando espetáculos na cidade do Recife, raríssimas vezes pude ter a satisfação de me deparar com tantos negros – principalmente negros adeptos de religiões de matrizes africanas – numa plateia de Teatro, isso sem dúvida se deve ao fato de que muitos negros não se sentem representados na nossa arte teatral, na verdade, muitas pessoas não se veem representadas no Teatro que fazemos hoje, nos acostumamos a fazer Teatro para os já iniciados, fazemos Teatro para a “galera” que também faz Teatro, acrescida claro, dos nossos amigos e familiares.


Que Teatro é esse que estamos fazendo? Qual o Teatro que queremos? Qual o público que queremos alcançar com a nossa arte?  O NATA parece saber bem qual o Teatro que estão fazendo e que público eles querem agradar, só por isso posso dizer com orgulho e sem medo de retaliações, que poucas vezes senti tanto prazer em aplaudir um espetáculo de pé, não só pela sua qualidade artística, mas sobretudo, por sua função cultural e social. Em suma, um Teatro do fogo, do rito e da arte.

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Quem matou Astrogildo?

Crédito: Divulgação do Espetáculo.

Por Crystoffer Guimarães Pereira Coutinho

Vamos indagar sobre Quem matou Astrogildo?, mas, antes, um breve resumo sobre esse espetáculo. O Coletivo Beltane montou a peça Quem matou Astrogildo?, que fez temporada no Teatro Valdemar de Oliveira. A comédia – a terceira produzida pelo coletivo teatral de dois anos – conta a disputa de quatro travestis para desvendar a morte de um amor em comum. No elenco estão Adimilson Campos (autor do texto), Angelis Nardelli, Aurélio Lima, Jefferson Nascimento e João Victor Alves.

Durante o espetáculo me vieram várias perguntas: Astrogildo existe na realidade?  Se é que ele existe, será que ele realmente foi morto? Afinal de contas, Astrogildo é um homem, uma mulher, ou outra travesti? No decorrer da peça, algumas hipóteses iam aparecendo, e, ao final do espetáculo, os espectadores puderam ter as suas respostas sobre quem foi o assassino de Astrogildo.

A peça gira em torno da busca pelo assassino de Astrogildo, que é o grande amor de vida das travestis (Georgina, Doroteia, Carmelita e Berenice), porém durante as investigações individuais de cada personagem, elas percebem que as outras podem ser as culpadas, ou até mesmo todas podem ser culpadas, o problema é que nenhuma das quatro lembra-se de nada, mas todas têm em mãos uma suposta arma do crime: elas são viúvas ou são as assassinas?

A comédia acontece a principio em uma sala de estar, uma recepção de uma pousada, onde se encontram quatro poltronas, uma mesinha de centro, uma mesa e sobre ela um rádio antigo, no fundo do palco grandes cortinas azuis e brancas. A iluminação e a sonoplastia, do começo ao fim do espetáculo, caminham juntas. Em momentos mais agitados, a iluminação também acompanhava o ritmo, da mesma forma nos momentos mais tensos e de suspense. Sobre os figurinos, podemos dizer que todos foram dignos de boas travestis, mas cada figurino coincidia com a personagem, por exemplo, Doroteia é uma travesti mais malandra, esperta, mas apimentada, com um estilo mais escrachado; já carmelita é uma travesti mais velha, que usa roupas mais compostas, mas que na hora de expressar seus desejos, ela ousa e mostra o que ela guarda em si, sua sexualidade e suas vontades.

A partir do momento em que Doroteia (JeffersonNascimento) entrou no palco e gritou “Ô DE CASA!”, vieram imediatamente à minha cabeça as características de um personagem típico, que é a maravilhosa travesti nordestina “barraqueira”, que provocou muitas risadas. Durante o decorrer da peça, os atores interagiam bastante com o público, mas principalmente Jefferson. Entre os momentos de interação, houve um de mais relevância, quando todas as travestis saem do palco e vão à platéia em busca Astrogildo, olhando os homens, fazendo perguntas e afirmando para os demais que os homens que elas encontraram são Astrogildo.  Nisso, a platéia cai na risada, principalmente as pessoas que foram abordadas e acusadas de ser Astrogildo. Além de rir, elas ficam algo estranhas, talvez com o contato, ou quem sabe até porque naquele momento saibam que também estão fazendo parte do espetáculo. Nas falas das personagens, estão presentes, músicas, lugares, acontecimentos que existem e fazem parte da nossa atualidade.

Já perto do fim do espetáculo, podemos ter novas visões e concepções da dramaturgia, pois descobrimos que todas são loucas, e que a pousada não é nada mais nada menos do que um hospício, e que todas elas vivem seus romances, suas aventuras, seus assassinatos em seus psicológicos, e que Astrogildo não passa de um ser que se aproveita de todas fazendo aumentar ainda mais suas loucuras.


Quem matou Astrogildo? é uma peça que me agradou bastante, não por ser apenas uma comédia, mas por ser uma comédia que me fez pensar, não sei se fez a todos, mas a mim fez, saí do teatro pensando: nós somos assim, idealizamos coisas, pessoas, objetivos, sem ao menos saber se eles são reais, e que nos fazem agir como loucos, e até nos fazem cometer erros. Então, não sei se essa foi a proposta do autor ou do grupo, mas me fez refletir. 

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Em Nome do Pai

Crédito da Imagem: Zé  Barbosa

Por Thays Fernanda dos Santos Silva

Relacionamento é um tema um pouco complicado para discussão, vivê-lo é ainda mais difícil, ainda mais quando nossas vidas giram em torno disso: nos relacionamos uns com os outros todos os dias e a forma  dessas relações é que levarão corpos e mentes a convergir, ou não.

Em nome do Pai é um espetáculo que trata da relação entre pai e filho após a morte da mãe, figura bem presente na vida dos dois, cada um com sua particularidade e carga. Durante o desenrolar das cenas, uma disputa entre pai e filho pelo amor da mãe vai sendo revelada, ao mesmo tempo em que discutem sobre o peso da perda e sua presença ainda bem viva em cômodos da casa. Logo na primeira cena, encontram-se pertences da mãe sobre móveis da sala, ambiente esse que permanece até o fim do espetáculo. A foto em preto e branco num porta-retrato sobre um móvel centralizado na cena reforça ainda mais essa presença, aos mesmo tempo em que elementos fúnebres no cenário, como malas acolchoadas como o interior de caixões servindo como cadeiras, reforçam sua ausência.

O filho é ator. Sua sensibilidade, forma de ver o mundo e a impotência diante do pai deixam essa relação ainda mais conflituosa. A perda da mãe e esposa os faz travar uma verdadeira batalha de sentimentos, egos. Durante todo o espetáculo, suas memórias mais íntimas vão sendo reveladas, deixando o clima ainda tenso e confuso para os dois. Não é nada fácil se expor, ainda mais quando se busca a reconstrução de algo que parece nem ter sido construído, ou foi, mas não juntos.

O texto nos causa reflexões sobre a situação, não só das personagens, mas também nossas diante da vida. Questionador e divertido ao mesmo tempo, o texto nos faz passear entre o que é real e o que é cena, aliás, os momentos mais divertidos do espetáculo. Por ser ator, o filho acaba ensaiando com o pai cenas de uma peça que estuda no momento e é justo neles que o cenário se torna mais funcional. 

As cadeiras/malas/caixão recebem outros significados, os caixotes como mesa de centro se transformam em montanhas e tudo o mais que for necessário para nos aproximar do ambiente proposto. Louças que constroem o lustre no centro da cena (lindíssimo por sinal), talheres e coisas de cozinha, casam com a sonoplastia e o ambiente. Tudo remete a casa, ao ambiente de um lar.

A sonoplastia passeia por um som de Saxofone, tilintar de pratos, talheres, louças que arranham e guitarras pesadas. Em alguns momentos perdi certas palavras justo pelo som do Sax, o vizinho músico surgia em algumas cenas e ficou complicado ouvir bem, causou um estranhamento não muito confortável, a princípio. Ainda sobre os sons, em um determinado momento, pensei ter ouvido a voz do pai sair da caixa de som, talvez para reforçar sua superioridade na cena. Ainda assim, penso ter sido dispensável, o texto e o ator estavam dando conta. Aliás, convincente.

Não conhecia nenhum outro trabalho do ator Jorge de Paula, possui presença vocal e física, trouxe mais força para as cenas. Samuel Lira, o filho, teve um bom desempenho, mas acredito que pela idade e também experiência com o teatro, Jorge tenha ficado um pouco exposto. Senti seu corpo um pouco armado, tenso, a espera da ação. Mas foi apenas o segundo dia de espetáculo, tudo ainda há de crescer muito. Samuel é músico e não conhecia seu trabalho como ator. Muito bom vê-lo em cena, surpreendente e corajoso.

O espetáculo foi bem recebido pelo público, houve risos e inquietações. Público esse que questiono. Para quem o espetáculo é dirigido? O Teatro da Livraria Cultura, o Eva Herz, é bonito, confortável, mas complicadíssimo de chegar. O Rio Mar é localizado onde quem não tem veículo próprio, só por muito amor ao teatro mesmo vai. Dois ônibus e um metrô me levaram até lá e o público foi diferente do que costumo ver. Pelos corredores fui uma figura curiosa para os frequentadores do local. Sou defensora da acessibilidade do teatro para todos e deixo meu apelo, na esperança de tornar a vê-lo em outras casas mais populares, ao público mais “comum”.

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segunda-feira, 4 de maio de 2015

BR-TRANS

Crédito da Imagem: Luciane Pires Ferreira

Por Ytalo Santana

“Meu cu para Fernanda Montenegro”, disse Silvero Pereira, ou melhor, Gisele, durante o espetáculo Br – Trans do coletivo As Travestidas dentro da programação da 3º edição do TREMA. Em que enxergo um manifesto não só da valorização das travestis e sim da arte, da transformista da boate que também é uma artista assim como qualquer outro. De maneira alguma a frase inicial quis desmoralizar uma das nossas divas do teatro brasileiro, jamais! Mas se encaixa numa plataforma em que só é ator/atriz valorizado aquele que tem nome, fama, carreira de anos e grande marketing.

12 de abril de 2015, Teatro Hermilo Borba Filho, eu, mero aluno de teatro por motivo pessoal estou ansioso com o espetáculo, já tinha ouvido falar e tive boas referências

Casa lotada, o que gera um pequeno desconforto devido ao pouco calor que fazia e ao fato de não ter mais lugar e ser preciso sentar no chão. Pelo menos havia um acolchoado e a coluna doeu pouco. Ou era isso, ou muitas pessoas ficariam sem prestigiar o espetáculo. E na entrada da grande plateia o ator já estava em cena com um lindo vestido vermelho com uma música de fundo ao vivo vindo de um teclado, tudo durou uns 18 minutos até que todas as pessoas entrassem. A música para, locução sobre o que é permitido no teatro começa, termina, e o artista corrige a locução dizendo que pode sim tirar fotos e filmar, desde que não atrapalhe com flashes e luz vermelha, e use a hastag #brtrans.

“Boa noite”, Silvero Pereira/Gisele prestava bastante atenção à plateia que adentrava naquele espaço, acredito que contaminou bastante e prejudicou um pouco no começo, devido a sua fala um tanto acelerada. Mas conseguiu manter o equilíbrio na fala pouco tempo depois. E eis que nasce uma personagem feminina, espanhola e caricata. Uma energia contagiante, porém a sua fala eu ainda não compreendia muito bem e comecei a observar o cenário; iluminação e sonoplastia, ambas operadas pelo próprio artista em cena.

O cenário era um apartamento bem aconchegante, onde o material para transportar o cenário servia como elemento de cena também, tudo sendo bem aproveitado, um microfone estilo anos 50 no meio, outro pequeno refletor que servirá como um abajur, um abajur próximo ao teclado e objetos decorativos. E sem contar com o recurso tecnológico usado, o slide. Tudo se TRANSformou  numa grande unidade ao redor do artista.

“Quando criança me disseram que se passasse por debaixo de um arco-íris virava mulher, passei minha infância toda procurando um arco-íris.” Frase que apareceu no slide enquanto Silvero cruzava o palco com movimentos performáticos. Quantas e quantas crianças estão em busca desse arco-íris. Algumas têm a sorte grande de ter uma família que compreende e outras infelizmente não, e são ‘demonizadas’ pelos seus pais, irmãos, parentes, amigos... e o manifesto começa, além de ter que enfrentar a sua família, a travesti precisa enfrentar a rua, enfrentar seus medos.

Numa bela explanação, Silvero diz: “Medo da polícia, medo de não ser aceito, medo delas, medo de noções, de  sentimentos desconhecidos, inclusive medo disso agora... ” “Mataram elas!” “Elas são corajosas, elas mostram, vendem ou simplesmente dão.” Junto com esse manifesto um corpo ganhando vida em cena, e eis que começam a surgir imagens de travestis assassinadas, com seus respectivos nomes masculinos e nomes sob os quais eram conhecidas. São 86 crimes cometidos e mostrados ao público. São as meninas mortas, e ele diz: “O universo chora... alguém quem tem que chorar por isso.”. No chão está desenhado uma representação de que ali foram mortas algumas delas, mortas por uma sociedade ignorante.

O marcante desse espetáculo é o fato do ator falar na primeira pessoa, te aproxima mais da história, te deixa mais confortável com o texto. E começou a contar a sua história, de sua luta. E quando um nordestino (cearense que ele é) mostra a força do seu povo e se coloca à frente por uma causa tão nobre, não tem como não se emocionar, e ainda acompanhado de uma boa música, além de todo um trabalho de corpo e voz, o ator começa a cantar a música de Caetano Veloso – Três Travestis, “Três travestis, três colibris de raça, deixam o país e enchem Paris de graça.”

Se desprendendo do foco manifesto, conhecemos Ofélia, e com uma fala já conhecida; no chão ela se apresenta: “Eu sou Ofélia, a mulher que o rio não conservou.” E começa a apagar as imagens (imagens estas que foram criadas no discurso inicial das corajosas que tinham armas apontadas para as suas cabeças sem saber o motivo) dos corpos no chão com uma força no olhar impecável. E como ela mesma disse: “Ofélia sai pra rua vestida em seu próprio sangue.” Aqueles músculos tremendo de dor, de medo, de agonia, de tantos e tantos sentimentos ruins estavam ali, escancarados para nós.

Analisando aquela Ofélia me recordo da música Cordeiro de Nanã: “Fui chamado de cordeiro, mas não sou cordeiro não, preferi ficar calado do que falar e levar não, o meu silêncio é uma singela oração a minha santa de fé.” E principalmente por um elemento visual do cenário que em momento algum foi usado, mas representava a fé tanto da travesti como a da unidade cênica. Uma espécie de mini santuário.

O apagar das luzes pelo próprio ator em cena também é um dos pontos altos, não é um Blackout geral, nem um lento, é com a força das suas palavras, de suas histórias. O escuro representa muito, assim como o claro, arrisco-me a dizer que é a omissão e a libertação respectivamente. Luz acende, música animada. Da caixa que serve para guardar o cenário, surge uma bolsa de plástico transparente. E é dela que surge a história de Marcelly, direto da ‘Disney’ das ruas, dos viadutos, das praças. Marcelly é narrada e sua representação é um abacaxi, junto com ela vem um facão, que é uma freira que ajudaria Marcelly na sua estadia, e sem esquecer-se da polícia que ficou com a parte de cima do abacaxi. Esse momento arranca várias risadas da plateia, travesti não é só sofrimento. E boa parte da plateia ainda participa experimentado o abacaxi que circula entre nós. Doce, amargo.

Assim como escreveu Gisele em seu braço esquerdo, assim que terminou a história de Marcelly escreveu Bruna no seu abdômen, transexual que mora com um rapaz de 22 anos. Bruna faz o papel de que muitas mulheres fazem que é da ‘Amélia’, porém para ela não é algo ruim não, pelo contrário. Quando se aposentar irá se casar. Bruna é sim uma mulher de sonhos! Viva as todas as mulheres transexuais!

Com o jogo teatral do desprendimento é notável outro corpo, o corpo inicial do espetáculo, e Gisele vai até o canto e puxa um espelho, em que o vidro espelhado de verdade não existe para podermos ver o rosto do ator, que faz os gestos vivos de alguém de frente a um espelho. Relatando a sua convivência nesse apartamento, uma situação inusitada, o vizinho de baixo fez uma dedetização em seu apartamento e as baratas subiram e se tornaram suas companheiras.

Enfim, Gisele decide colocar uma música para tocar e avisa que as travestis podem não gostar pelo motivo de não ser música de bater o cabelo. Em inglês, ela puxa a caixa mais uma vez, senta em cima e traduz a letra: “... mas eu não consigo acreditar que deixei o passado para trás... essa parte eu não sei.” (risos da plateia), e no supetão pula em cima da caixa e grita: “LIVRE-SE! LIVRE-SE! LIVRE-SE DELE!” e em meios a risos, a comicidade e dor, ela torna a cena híbrida. “Procurando o paraíso eu encontrei o demônio, em mim eu encontrei o demônio.” Todos nós carregamos um demônio, mesmo negando, pois então livre-se desse peso que você carrega nas costas, não só travestis e transexuais, você que é pessoa também o carrega.

Ao apagar todas as luzes e deixar acessa a da cabeceira, uma leitura de uma carta: “11 de agosto de 1996, meu querido filho...” Se seguirmos a linha Nelson Rodrigues, toda família tem seu podre, tem sua mancha. Talvez ela fosse essa mancha apesar de um pai ignorante: “senta como homem, conversa como homem.” E na escola faz um alerta que infelizmente sabemos que é o motivo de muitos suicídios de crianças homo, trans, “crianças diferentes” para a sociedade. As disciplinas cursadas são: ódio, medo, solidão e EXCLUSÃO. E você é obrigado a fazer, e ainda traz uma discussão contínua ainda, o banheiro. Segundo seu relato ainda na faculdade enfrentou tudo isso e teve uma hora que mandou tudo para “puta que pariu”, “já estava feminina mesmo”, e ainda bem que você teve tal coragem. E assim deu abertura ao seu lado feminino e cantarola: “ser um homem feminino não fere o meu lado masculino...”.

Na perfomance enxerguei muito um professor que tive; os trejeitos, a feminilidade e masculinidade dentro da mesma pessoa e a liberdade aflorada com a mistura dos dois gêneros. Ela conta que conseguiu um emprego numa livraria, mas os clientes não sabiam se era um homem ou uma mulher e o gerente a demitiu. Trabalhou no salão de beleza, mas a dona do salão começou a ter ciúmes e também a demitiu, e sem dinheiro e trabalho, restou à prostituição, e fecha a perfomance. E narra outra história riscando a barriga, Dani. Dani Boy, conheceu no presídio ministrando uma oficina e quando foi embora ganhou um presente, uma almofada que permanece presente também durante todo o espetáculo. Aos que acreditam em “energias”, Dani Boy estava ali naquela almofada. Não era apenas um simples agradecimento por ter se sentido pela primeira vez livre.

E depois de toda essa catarse de convivência no presídio foi parar na noite, porém o seu “boy” tinha ciúmes da sua vida, uma relação turbulenta que só a prejudicou. Essa mistura de “eu” e outras histórias te faz refletir a confusão que é a vida de uma travesti, pois para viver bem a maioria delas vive como imigrantes em sua própria terra, e não foi diferente com ela. Partiu, encontrou uma amiga, uma bicha da boate que a incentivou a ser artista e queria a toda custo que Gisele subisse no palco, ela não acreditava nisso, mas decorou a música e se preparou para o grande momento.

Surge um elemento de cena, dois lençóis branco, um se transforma em vestido e o outro no turbante. Para mim foi o momento mais emocionante do espetáculo, quando nasce uma artista, uma transformista. O caminhar dos braços, o olhar e corpo concentrados naquela música belíssima da Maria Bethânia: “perdoei-me do nome, hoje podes me chamar-me de tua, dancei em palácios, hoje danço na rua.” E volto ao ponto inicial, à valorização desses artistas da dublagem, representação ou imitação. A entrega é arte!

Tyna, do presídio central. “Báh!”, da janela de uma parte do presídio avistava a casa da sua vó e dizia que quando saísse de lá eles teriam que aceitar. A cena acontece em um dos últimos momentos do espetáculo, quando o armário ao lado do piano serve de troca de figurino, narrando a história de lá mesmo, o artista sai com um par de botas que quase chega aos joelhos. E traz também a história de Babi, que tinha um sonho de ser atriz e conheceu um diretor que a convidou para fazer um show em um teatro lotado e uma música forte. As duas histórias são muito corridas, mas têm um caráter significativo justamenta pela música que as encerra, Geni e o Zepelim: “joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!” Não tem como não se lembrar da Letícia Sabatella na interpretação da música, inclusive o espelho, o piano e o microfone. Mas se foi uma inspiração, acertou!


Corpo, alma e voz. Sexualidade, travesti. Artistas. Guerreiras. Femininas e masculinas são mães, irmãs, tias, filhas. São mulheres transexuais, são mulheres. Que bom que artistas também lutam por uma sociedade com direitos iguais, com amor. O espetáculo filosófico, reflexivo, formativo cumpre o papel de que teatro é para todos e traz o manifesto da violência verbal, moral e física que todas sofrem diariamente. Infelizmente não vi uma travesti na plateia, talvez até tivesse. Mas existem muitas delas nos palcos das boates, das ruas, das praças, nas festas de animações da vida. Vocês existem e ocupem o espaço que é nosso.

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